Participação social precisa ter mais protagonismo na saúde, especialmente na inclusão de novas tecnologias

Com rol taxativo da ANS e possibilidade de oferta de remédios off label no SUS, contribuições dos cidadãos tornam-se ainda mais importantes para preservar direitos

Embora garantida pela Constituição e considerada fundamental para as políticas públicas, a participação social continua sendo subutilizada pelos tomadores de decisão nos processos de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde. É isso o que apontam especialistas em direito sanitário e organizações que representam pacientes.

Para eles, a participação social, embora seja regra, não é devidamente considerada pelas instâncias governamentais na maioria das tomadas de decisão. Ela precisa ganhar mais protagonismo, principalmente após as recentes definições que afetam os processos de incorporação de tecnologia nos sistemas público e privado de saúde. São casos como a decisão sobre o rol taxativo para os planos de saúde e a autorização para oferta de medicamentos off label no SUS.

A participação da sociedade nos processos de decisão sobre a incorporação de novas terapias ou alterações de protocolos de tratamento está prevista tanto pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o mercado de convênios médicos, quanto pelo Ministério da Saúde, por meio da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), responsável por aconselhar o órgão federal sobre a inclusão de novas tecnologias no sistema público.

A escuta da sociedade se dá de diferentes formas, dependendo do caso. Consultas e audiências públicas e testemunhos de pacientes são alguns dos canais disponibilizados. 

Mas, para Gustavo San Martin, diretor-executivo das ONGs Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD), essas instâncias participativas ocorrem, muitas vezes, para cumprir tabela. “No caso da Conitec, o paciente é acionado em um processo que já está com uma recomendação preliminar”, diz San Martin. “Poucas vezes você vê a participação social alterando a recomendação preliminar”, arremata.

Números referentes ao período de 2012 a 2019 confirmam a percepção do diretor-executivo da AME/CDD. Embora o total de consultas públicas e contribuições da sociedade civil venha crescendo nos últimos anos, apenas 4% das recomendações iniciais foram revistas após a etapa de participação social. 

Segundo dados disponíveis no site da Conitec, o órgão emitiu 490 recomendações referentes à incorporação ou não de tecnologias no período mencionado. Somente 20 destas foram alteradas após a etapa de consulta pública, mostra uma pesquisa da Fundação João Pinheiro, em Minas Gerais.

No estudo, conduzido por Janaína Martins Bretas em seu mestrado, são avaliados quais tipos de contribuições trazidas nas consultas públicas parecem ter sido determinantes para a mudança de posição da Conitec. A autora descobriu que “novas propostas de preço [pela indústria] para os medicamentos avaliados contribuíram com metade das ocasiões em que a Conitec alterou seu parecer sob influência da participação social”. Em apenas um desses episódios, também houve “a apresentação de evidências científicas adicionais que refletiram em novo julgamento da tecnologia”.

Nos demais processos em que houve mudança do parecer inicial, mostra a pesquisa, “apontamentos provenientes das consultas públicas, mesmo não trazendo novos elementos científicos, proporcionaram mudanças da interpretação dos dados”.

Os recursos financeiros, portanto, parecem mais relevantes para a incorporação do que a eficácia ou segurança da tecnologia.

Qualificação das contribuições e transparência no processo

Em termos quantitativos, a participação social nos processos da Conitec vem crescendo de forma significativa desde 2018. Antes daquele ano, o número de contribuições anuais em consultas públicas jamais havia ultrapassado o patamar dos 18 mil. Já entre 2018 e 2021, a quantidade de aportes por ano nunca ficou abaixo dos 69 mil. 

Em 2021, foram 82 447 contribuições, considerando tanto as técnico-científicas quanto as “experiências/opiniões” – que são as participações de pacientes, familiares e profissionais de saúde.

Mas o crescimento do volume de contribuições não significa necessariamente que os pacientes e demais atores da sociedade civil estejam sendo mais ouvidos pelos tomadores de decisão, como visto na pesquisa da Fundação João Pinheiro. Para que isso ocorra, dois fatores são fundamentais, segundo os especialistas: a qualificação das contribuições da sociedade civil e a transparência dos critérios usados nos processos de incorporação de tecnologias.

“Nem a sociedade civil nem as instâncias governamentais sabem direito como otimizar a participação social. Isso porque não temos critérios claros para a tomada de decisão”, afirma Tiago Farina Matos, advogado sanitarista e consultor em advocacy. “Se você tem critérios claros, a sociedade civil saberá como contribuir com mais assertividade e o tomador de decisão, como utilizar essas contribuições”, completa. 

Matos defende que a participação social ocorra, inclusive, na definição desses critérios, e cita uma consulta pública aberta até 11 de julho em que a Conitec está colhendo contribuições justamente para definir quais serão os parâmetros de custo-efetividade adotados pela comissão na avaliação de tecnologias. 

O advogado sanitarista Paulo Benevento, especialista em advocacy e consultor jurídico das ONGs AME e CDD, também defende a participação social na definição dos critérios e destaca a importância de as instâncias governamentais garantirem espaços que permitam contribuições mais qualificadas. “A participação de um grande número de cidadãos em uma consulta pública é importante para demonstrar a relevância da questão. Mas não podemos olhar só quantidade, é preciso ter contribuições com mais qualidade. E, para isso, precisamos ter um caminho pavimentado, com espaços adequados, como audiências públicas, que hoje não são obrigatórias nos processos da Conitec, por exemplo”, destaca.

Ele explica que, na saúde suplementar, as audiências públicas são obrigatórias sempre que a ANS dá um parecer desfavorável à incorporação de uma nova tecnologia. Já no SUS, a audiência pública é convocada por deliberação do secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, sem critérios claros.

“A audiência pública é, muitas vezes, o momento que poderíamos demonstrar que os dados e evidências usados na tomada de decisão não são os mais adequados. Mas, hoje, a gente fica dependendo do secretário achar a matéria relevante. Defendemos que, assim como no sistema privado, as audiências sejam obrigatórias também no SUS”, opina Benevento.

Diante do cenário, AME e CDD redigiram uma minuta de projeto de lei que torna compulsória a realização de audiência pública sempre que a Conitec expedir recomendação desfavorável à incorporação de uma tecnologia, ou favorável à desincorporação. A proposta foi encampada pela deputada federal Silvia Cristina e agora tramita na Câmara.

Movimento A Regra É Clara busca garantia de direitos

A iniciativa de propor um projeto de lei sobre a obrigatoriedade das audiências públicas é uma das ações do movimento A Regra É Clara (AREC), criado pelas ONGs AME e CDD para promover, aprimorar e desenvolver estratégias de conscientização e mobilização social para a efetivação de políticas públicas de saúde. 

Por meio do movimento, as organizações buscam evidenciar descumprimentos de regras e propor mudanças para ampliação e aprimoramento do acesso à saúde. Uma das seis bandeiras do movimento é justamente a de que a #participaçãosocialéregra. Ou seja, é vital para a formulação de políticas públicas e incorporação de tecnologias.

“O movimento A Regra É Clara surgiu de uma necessidade ainda latente da sociedade civil se mobilizar enquanto setor. Nós temos associações de pacientes que representam causas individuais e algumas federações de associações, mas a saúde no Brasil não pode ser gerida a partir de uma doença ou outra”, destaca Benevento. “O movimento visa entender a legislação vigente para tratar de causas suprapatológicas. São causas que, uma vez resolvidas, beneficiariam a todos os usuários”, complementa.

Risco da oferta de medicamentos off label no SUS sem participação social

Uma das atuais prioridades da AME e CDD é impedir que a lei 14.313/2022, sancionada em março deste ano, seja usada para desrespeitar os ritos de incorporação de tecnologia que preveem participação social. Essa lei autoriza o governo federal a ofertar medicamentos com indicação de uso diferente da aprovada pela Anvisa (off label) sem uma autorização dessa agência.

A preocupação se baseia em uma portaria do Ministério da Saúde publicada em maio, que autoriza a inclusão do medicamento bevacizumabe (Avastin) no protocolo de tratamento da degeneração macular relacionada à idade (DMRI). O remédio está aprovado no Brasil pela Anvisa apenas para uso em pacientes com câncer colorretal metastático e outros tumores sólidos.

Segundo a portaria, a Conitec expediu recomendação favorável à alteração do protocolo da DMRI para inclusão do bevacizumabe sem submeter à consulta pública os relatórios que basearam sua recomendação.

A CDD entrou com recurso administrativo no Ministério da Saúde e representação junto ao Ministério Público Federal questionando a conduta. “Seguir os ritos previstos é a única garantia de que a gente não vai ter decisões políticas. A opção de incorporar uma tecnologia nunca pode ser política, ela tem que ser técnica”, destaca Paulo Benevento. ”Sem o rito, podemos ter a interferência de pessoas com diferentes interesses”, arremata.

Vale lembrar que a lei 14.313/2022 foi aprovada e sancionada no contexto das pressões políticas para a oferta de hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19, remédio que se mostrou ineficaz contra a doença em estudos clínicos, mas que é apoiada pelo presidente Jair Bolsonaro e alguns de seus seguidores.

Rol taxativo da ANS e participação social

Outra bandeira das organizações que representam pacientes é fortalecer a participação social também nas decisões da saúde suplementar, principalmente após decisão de junho do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definiu que o rol da ANS é taxativo. Ou seja, os planos de saúde deixam de ser obrigados, salvo exceções, a cobrir procedimentos e medicamentos fora dessa lista.

Segundo especialistas e associações de pacientes, a mudança reduz as possibilidades de o paciente conseguir, via judicial, acesso a alguns tratamentos que estão fora do rol, o que indica a urgência de ampliar a participação social na definição do que entra na lista de procedimentos cobertos.

“Os critérios para incorporação de tecnologia no sistema privado, assim como no público, não são claros. Esse cenário piora com a decisão do rol taxativo, porque a decisão da ANS do que incluir no rol ganha mais força. Antes, a gente tinha mais possibilidade de discutir isso na Justiça. Dessa forma, é importante que esses parâmetros usados para inclusão fiquem mais claros para que a sociedade possa participar”, afirma Benevento. 

Para Gustavo San Martin, o mais importante é que a ANS considere verdadeiramente as necessidades dos pacientes. “A participação social não está agregando o valor que pode agregar porque o tomador de decisão vem de uma cultura na qual a participação social era simplesmente pró-forma”, diz o diretor-executivo das ONGs AME e CDD.

Conquistas da participação social e como contribuir

Embora a importância dada à participação social esteja longe da ideal, movimentos da sociedade civil conseguiram importantes avanços nos últimos anos. Paulo Benevento relembra que, graças a organizações como AME e CDD, foi possível, por exemplo, tornar obrigatória a realização de audiências públicas nos processos de incorporação de tecnologia na saúde suplementar – antes, a realização do evento dependia de deliberação da Diretoria Colegiada da agência. 

No sistema público, a Conitec, também após pressão social, passou a divulgar, em 2020, os vídeos das suas reuniões. Ainda no SUS, a participação social foi determinante para a incorporação do medicamento nusinersena para o tratamento da atrofia muscular espinhal, após recorde de participações. Em duas consultas públicas sobre o assunto, realizadas em 2018 e 2019, foram mais de 78 mil contribuições.

Qualquer cidadão pode contribuir nos processos de avaliação e incorporação de tecnologia, tanto referentes ao sistema público quanto ao privado. No SUS, os principais caminhos são as consultas públicas e os depoimentos sob a perspectiva do paciente, ambos com inscrições e formulários disponibilizados no site da Conitec. 

O portal também traz a agenda de audiências públicas e iniciou, em 2020, um cadastro de usuários do SUS e associações de pacientes para montar um banco de dados para “ações de participação social”. O cadastro pode ser feito por meio deste formulário.
Na saúde suplementar, a participação se dá também principalmente por meio de consultas públicas e audiências públicas. A página da ANS sobre participação da sociedade traz outros detalhes sobre instâncias participativas.

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