Prazo de 180 dias para oferta de novos medicamentos via de regra não é cumprido

Atrasos na oferta de medicamentos incorporados ao SUS chegam a ultrapassar os mil dias; organizações de pacientes criam ferramenta para fiscalizar processos e identificar gargalos

Qualquer nova tecnologia ou medicamento incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS) deve estar disponível aos pacientes em no máximo 180 dias após a decisão do Ministério da Saúde pela sua inclusão. A regra não é nova, mas segue sendo descumprida mesmo após dez anos da sua criação, em 2011. O atraso na oferta desses remédios e terapias prejudica tratamentos médicos.

O prazo de 180 dias entre a incorporação do medicamento e a chegada do produto para quem precisa foi definido no artigo 25 do Decreto Presidencial 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Naquele mesmo ano, foi criada a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), órgão responsável por dar recomendações técnicas ao Ministério da Saúde sobre a inclusão de novos medicamentos, exames e outros procedimentos no sistema público de saúde.

Diferentes pesquisas e levantamentos mostram, porém, que o desrespeito à regra ocorre na maioria dos processos e que o prazo entre a inclusão e oferta de uma nova tecnologia no SUS pode chegar a 1 314 dias – um atraso de três anos em relação ao estipulado em lei.

Em um relatório de avaliação sobre o processo de incorporação de tecnologias em saúde publicado em 2021, a Controladoria-Geral da União (CGU) estudou o caso de 25 medicamentos e constatou que nenhum foi disponibilizado no prazo previsto no decreto de 2011. A média de prazo entre a decisão de inclusão no SUS e a oferta na rede pública para esse conjunto de drogas foi de 624 dias.

Estudo publicado em maio de 2022 no periódico científico Ciência & Saúde Coletiva teve achados semelhantes. No trabalho, liderado pela pesquisadora Helaine Capucho, da Universidade de Brasília (UnB), foram avaliados os processos de incorporação de 46 medicamentos. A média de prazo entre a inclusão e a oferta no SUS foi de 762 dias (pouco mais de dois anos) para medicamentos oncológicos e 372 dias (cerca de um ano) para os demais.

Os exemplos foram listados em representação encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF) em maio de 2022, pedindo a abertura de um inquérito civil para a apuração das irregularidades.

No documento, o advogado Paulo Benevento, especialista em advocacy e consultor jurídico da AME e da CDD, argumenta que “a Administração Pública Federal vem descumprindo o prazo estabelecido pelo próprio chefe do Poder Executivo, de modo sistemático e reiterado, a ponto de comprometer a política de assistência farmacêutica e acirrar a judicialização da saúde, tudo em detrimento dos legítimos interesses de pacientes, que dependem dos medicamentos”.

Atrasos recorrentes também foram encontrados pelas ONGs Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD). Como parte do movimento A Regra É Clara (AREC), elas conduziram uma análise de oito medicamentos incorporados no SUS entre 2020 e 2021 para tratar diferentes doenças, como esclerose múltipla, artrite reumatoide e mucopolissacaridose, mas que ainda não chegaram aos hospitais ou farmácias de alto custo. No pior caso mapeado pelas entidades, o atraso chega a 463 dias.

Razões do atraso

Segundo análises feitas dentro do âmbito do movimento A Regra É Clara, os atrasos são motivados por uma demora nos diferentes processos e trâmites burocráticos necessários para viabilizar a compra e entrega do medicamento. Isso porque, após a decisão de incorporar um novo medicamento ao SUS, o Ministério da Saúde e demais instâncias governamentais envolvidas precisam cumprir uma série de etapas.

Uma é reformular o Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica (PCDT) da doença em questão, que traz recomendações quanto ao tratamento preconizado. Em seguida, é preciso que ministério, Estados e municípios decidam quem vai financiar a compra daquela nova terapia. Depois disso, o ministério inicia o mapeamento de pacientes que devem utilizar a nova tecnologia para estimar o quantitativo a ser comprado. 

Após essa definição, iniciam-se os processos de licitação e contratação e, em seguida, a nova tecnologia é incluída na tabela do SUS. Após efetivada a compra, vem a etapa de distribuição.

“Acontece que, em alguns casos, o prazo de 180 dias escoa e nem sequer o processo de atualização do PCDT foi finalizado. Existe ainda um problema de transparência. Identificamos uma demora nas diferentes fases, mas não sabemos exatamente quais são os gargalos de cada uma”, afirma Benevento. 

Para Claudio Maierovitch, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o prazo de 180 dias é suficiente para concluir as etapas necessárias para a compra e entrega da tecnologia. Mas, para isso acontecer, as diferentes áreas envolvidas no fluxo devem estar alinhadas. “É preciso que haja um entrosamento das áreas técnicas que estudam as doenças e formas de oferecer os tratamentos com as áreas de licitação e aquisição, por exemplo”, diz o especialista.

Ele relembra os recentes casos de desabastecimento de alguns medicamentos nas unidades públicas do país e do vencimento de itens como testes de covid-19 para defender um fortalecimento desse setor no ministério. “A área de assistência farmacêutica parece debilitada. É preciso recompor a capacidade técnica do ministério nesse sentido”, reitera.

A CGU também investigou as causas do atraso na oferta de medicamentos incorporados em seu relatório de avaliação publicado em 2021. Dos 25 fármacos que avaliou, o órgão fez uma análise minuciosa daqueles cujo prazo entre incorporação e oferta tinha sido superior a dois anos – o que representa um grupo de oito drogas. Nele, a CGU descobriu que foram gastos 300 dias somente na etapa de definição de quem financiaria a compra da nova tecnologia.

Entre essa etapa de definição do financiador e a efetivação da primeira aquisição do medicamento, foram gastos mais 265 dias, em média. Ou seja, somente com duas das etapas necessárias para a oferta da tecnologia, foram consumidos 565 dias – o triplo do tempo máximo previsto na legislação para que o remédio estivesse já sendo disponibilizado aos pacientes.

Diante do problema, a CGU sugere que a pactuação do financiamento das novas tecnologias seja feita antes mesmo da publicação da portaria que confirma a incorporação – ou seja, ainda durante as discussões realizadas na Conitec.

Demora maior para tratamentos contra o câncer

Embora o desrespeito ao prazo dos 180 dias seja comum nas incorporações de medicamentos para diferentes doenças, os atrasos são ainda mais críticos em terapias contra o câncer. Como já mencionado acima, estudo da UnB revelou que o prazo entre a incorporação e a oferta de medicamentos oncológicos é, em média, o dobro do observado para as demais tecnologias (762 dias contra 372, respectivamente).

Para Paulo Benevento, isso acontece porque as diretrizes terapêuticas para pacientes com câncer são individualizadas – é o hospital que muitas vezes tem que executar esse processo de compra. “Quem vai escolher o esquema de tratamento quimioterápico para um paciente, por exemplo, é o hospital habilitado para tratamento em oncologia (Unacon). Então ele compra o medicamento e o ministério reembolsa, mas o valor custeado pela União está defasado, o que faz o hospital depender de verba do Estado para arcar com o restante da despesa”, explica o advogado. “Nos hospitais em que o Estado não arca com essa diferença, pode ser que o tratamento nunca seja ofertado, criando desigualdades entre Estados e ferindo o princípio da equidade no SUS”, afirma.

Segundo Thiago Bueno de Oliveira, oncologista clínico do A.C.Camargo Cancer Center e presidente do Grupo Brasileiro de Câncer de Cabeça e Pescoço (GBCP), a demora tanto no processo de incorporação quanto de oferta de drogas oncológicas inovadoras impede que pacientes do SUS tenham acesso a medicamentos que poderiam fazer diferença em seus tratamentos. 

“Há ainda uma desigualdade grande entre o que o SUS oferece e os tratamentos disponíveis na saúde suplementar. Entendo as barreiras financeiras e logísticas, mas, uma vez incorporadas, elas se traduziriam em ganho de sobrevida e melhor taxa de resposta ao tratamento. Na prática, essa demora faz com que pacientes tenham menor chance de cura e maior mortalidade”, diz Oliveira.

Monitor dos 180 dias

Diante do cenário de reiterados atrasos e de falta de transparência sobre os gargalos em cada uma das fases necessárias para a oferta de novas terapias no SUS, o movimento A Regra É Clara criou uma ferramenta que acompanha todos os processos de incorporação de novas tecnologias no SUS e monitora de forma detalhada os status de cada fase. Ainda em desenvolvimento, o Monitor dos 180 dias tem como principal objetivo supervisionar as diferentes etapas necessárias para a primeira oferta de novas tecnologias no SUS e fiscalizar o cumprimento do prazo previsto em lei. 

“Vamos acompanhar todos os processos de incorporação, que começaram em 2012, com a criação da Conitec. São mais de 900 processos. Isso nos permite identificar tendências, gargalos, criar estatísticas e subsidiar possíveis intervenções em políticas públicas”, diz Paulo Benevento.

A ferramenta ainda não está disponível ao público, mas já é usada internamente pela equipe de advocacy das ONGs AME e CDD para embasar ações de defesa dos direitos dos pacientes. O levantamento dos oito casos relatados ao MPF de medicamentos incorporados entre 2020 e 2021 e que ainda não foram ofertados aos pacientes foi feito graças ao monitor.

O intuito do A Regra É Clara (AREC) é aprimorar e desenvolver estratégias de conscientização e mobilização social para a efetivação de políticas públicas de saúde. Por meio do movimento, as organizações buscam evidenciar eventuais descumprimentos de regras e propor mudanças para ampliação e aprimoramento do acesso à saúde. Uma das bandeiras do movimento é o respeito ao prazo de 180 dias para oferta de tecnologias de saúde após sua incorporação.

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